Crônicas pra ninguém ler: Sinestesia

Laura Neves
3 min readMar 8, 2021

Dona Vaida descia pelo elevador de serviço todos os dias, por mais que gostasse de usar as escadas. Os vizinhos de seu simplório prédio, beirando a esquina, outrora a praia, espreitavam pelas brechas do sol quente que subia o morro. Era solteirona, disléxica e muitas vezes túrgida. O porteiro disse que não a via fazia anos, mas Vaida sempre o observava quando a bituca parava de queimar, cuspindo-a da boca para o nariz.

Costurada e mumificada dos pés a cabeça, Vaida avançava pelos degraus turbulentos do edifício mofado. Tinha cheiro de queimado, resina e manteiga, impregnante. Não se sabia quem cheirava tão mal, Vaida tinha mania de culpar o prédio. Cumprimentou o porteiro fumante, que não trabalhava mais lá fazia anos e em um súbito tremelique girou a chavezinha na fechadura e saiu de casa como se não tivesse aprendido a entrar.

As marcas de caneta ainda entravam em sua pele, que apesar de não ser clara, refletia os momentos de angústia. Não tinha filhos e nunca havia casado, porém costumava sair pela calçada em busca de dinheiro às noites de quarta-feira, logo após se batizar novamente na capela Dom Bosco. Talvez por não ter tido sorte, de vez em sempre escutava piadinhas sobre a posição do “i”, Vaida tinha bastante sorte, aliás sua mãe, apesar de leiga em sintaxe, acertou na mosca a enfilaragem das letras.

Era bonita mas triste, o que não tinha muita diferença. Tinha olhos fadigosos e sorriso melancólico, busto duro e cabelo de anjo. Comprara todo o tipo de procedimento estético em uma clínicazinha de fachada, aquelas do tipo que se anuncia o nome no portão. Trazia dentro da niqueleira recortes amassados do jornal da manhã, estampando a cara de uma atriz francesa pouco conhecida, isso explica como persuadiu ator-doutor. Pouco a pouco despediu-se friamente dos traços de criança, assinando seu compromisso como mulher. Agora, tinha nariz arrebitado, sobrancelhas pontudas e lábios escancarados, uma encruzilhada esquisita do vulgar com o tédio.

De manhã quando chegou ao apartamento, tirou a tala metálica do queixo e em seguida todas as outras. Não tinha patrão ou dono, era solta e sozinha, mas nunca solitária, negociava com as suas o sofrimento de sobreviver. Espriguiçava-se das noites de quarta-feira porém ia ao culto da capela, da qual até o padre havia desistido. Gostava de estar sozinha e detestava ser.

Maturidade, algo que nunca foi seu ou lhe pertenceu. Nem por um segundo. Beijou sua mãe ainda guria e organizou a papelada do cemitério, por um triz até lhe comprou flores cor-de-rosa mas achou o preço um absurdo. Nunca amou nenhum homem e nunca se arrependeu, homem só dá trabalho, e isso ela já tinha de sobra. Vivia se remendando como um sapato furado e apesar de nunca ter tido espelhos, gostava de imaginar o que seu rosto lhe diria.

Já não diria nada em português, apesar de ter sido criado no Brasil. E se falasse francês? Pomposo demais. Talvez não lhe dissese nada, como o porteiro morrido, os vizinhos enxeridos e as colegas de profissão, mas tinha medo de que ele apressasse o “i” para o meio e a sociedade para o centro. Não sabia rezar ou escrever, porém sabia ser mulher, não do jeito que gostaria, mas como conseguia. Deus a entendia e a burguesia se divertia com o fardo de chamar-se Vadia, mais uma caçula da vida.

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